segunda-feira, 9 de abril de 2018

Entre o mundo e eu

Li Entre o mundo e eu, livro em que Ta-Nahesi Coates escreve uma longa carta a seu filho de 15 anos sobre o que é ser negro nos Estados Unidos.

(De uma forma resumida: ser negro é não ter direito pleno a seu próprio corpo, uma herança escravocrata. Imagino que no Brasil o sentimento de um negro seja parecido ou, talvez, ainda pior.)

Em Os Sertões, que acabara de ler imediatamente antes, a frase que me bateu foi "Canudos nunca se rendeu". Entre o mundo e eu é cheio de frases potentes, como citarei abaixo, mas a frase que ficou não é de Coates, e sim do jornalista Ralph Wiley, rebatendo um questionamento de Saul Bellow. O romancista tinha dado uma patada nos negros e na arte africana como um todo ao perguntar quem seria o Tolstói dos zulus.

“Tolstói é o Tolstói dos zulus”, respondeu, mais tarde, Wiley. “A menos que você ache por bem cercar propriedades universais da humanidade para uma posse tribal exclusiva.”

Tolstói é o Tolstói dos zulus.

Óbvio que é.

A arte fica mais fraca, e mais frágil, se é só de um pequeno grupo.

Seria uma pena que Coates fosse o Tolstói dos zulus, e não pudéssemos lê-lo e sermos impactado por ele fora de uma dada etnia ou comunidade.

Deixo aqui alguns trechos que selecionei. A edição é da Companhia das Letras, com uma ótima tradução de Paulo Geiger:

"Eu não podia encontrar um refúgio, como faziam muitos, na igreja e em seus mistérios. Meus pais rejeitavam quaisquer dogmas. Desprezávamos os feriados impingidos pelos que queriam ser brancos. Não suportávamos seus hinos. Não nos ajoelharíamos ante seu Deus. E assim eu não tinha o sentimento de que havia um Deus justo ao meu lado. 'Os mansos herdarão a terra' não significava nada para mim. Os mansos eram surrados no oeste de Baltimore, pisoteados na Walbrook Junction, espancados em Park Heights e estuprados nos chuveiros da prisão municipal. Meu entendimento do universo era físico, e seu arco moral se inclinava para o caos e terminava numa caixa."

"Sou negro, fui saqueado e perdi meu corpo. Mas talvez também possa saquear, pegar o corpo de outro humano para me afirmar numa comunidade. Talvez já tenha feito isso. O ódio confere uma identidade. O crioulo, a bicha, a puta iluminam a fronteira, iluminam o que ostensivamente não somos, iluminam o Sonho de ser branco, de ser um Homem. Damos nomes aos odiados estranhos e assim somos confirmados na tribo."

"A nenhum de nós foi prometido que estaremos de pé ao final da luta, os punhos erguidos para o céu. Não podemos controlar o número de inimigos que temos, sua força ou armamento. Às vezes nos deparamos com uma situação bem ruim. Mas quer se lute, quer se corra, devemos fazer isso juntos, porque essa é a parte que está sob nosso controle. O que nunca devemos fazer é entregar voluntariamente nossos corpos ou os corpos dos nossos amigos. Esta é a sabedoria: sabemos que não fomos nós que estabelecemos a direção da rua, mas apesar disso podemos — e devemos — conceber o rumo de nossa caminhada. E é este o sentido mais profundo do seu nome — o de que a luta, em si mesma e por si mesma, tem significado."

"Agora entendo meu pai e o velho mantra: 'Ou eu bato nele, ou bate a polícia'."

"Os negros amam seus filhos com uma espécie de obsessão. Você é tudo que temos, e já nos chega em perigo. Penso que preferiríamos matá-lo nós mesmos a vê-lo morto pelas ruas que a América criou. Esta é a filosofia dos descorporificados, das pessoas que nada controlam, que nada podem proteger, que estão destinadas a temer não apenas os criminosos entre elas, mas também a polícia que age soberana acima delas com toda a autoridade moral de uma gangue de proteção."

"'Eu poderia mandar prender você!'. O que corresponde a dizer: 'Eu poderia tomar o seu corpo'."

"No início da Guerra Civil, nossos corpos roubados valiam 4 bilhões de dólares, mais do que toda a indústria, todas as ferrovias, oficinas e fábricas americanas combinadas, e o primeiro produto fornecido por nossos corpos roubados — o algodão — era a principal exportação da América. Os homens mais ricos da América viviam no vale do rio Mississippi, e sua riqueza provinha de nossos corpos roubados. Nossos corpos foram mantidos na servidão por nossos primeiros presidentes. Nossos corpos eram negociados a partir da Casa Branca por James K. Polk. Nossos corpos construíram o Capitólio e o National Mall. O primeiro tiro da Guerra Civil foi disparado na Carolina do Sul, onde nossos corpos constituíam a maioria dos corpos humanos do estado. Eis aí o motivo da grande guerra. Isso não é segredo. Mas podemos fazer melhor, e encontrar o bandido confessando seu crime. 'Nossa posição é totalmente identificada com a instituição da escravatura', declarou o Mississippi ao deixar a União, 'o maior interesse material do mundo'."

"É isso que eu queria que você soubesse: na América, é tradição destruir o corpo negro; é uma herança. A escravidão não foi apenas o antisséptico emprestar do trabalho — não é tão fácil conseguir que um ser humano comprometa seu corpo contra seu próprio e elementar interesse. E assim a escravidão tem de ser ira casual e amputações aleatórias, o corte de cabeças e cérebros estourados sobre o rio enquanto o corpo procura escapar. É um estupro tão regular que chega a ser industrial. Não há um modo mais elevado de dizer isso. Não disponho de hinos de louvor, nem de velhos spirituals negros. O espírito e a alma são o corpo e o cérebro, que são destrutíveis — e, justamente por isso, tão preciosos. E a alma não escapou. O espírito não se alçou nas asas do gospel. A alma foi o corpo que alimentou o tabaco, o espírito foi o sangue que irrigou o algodão, e eles criaram os primeiros frutos do jardim americano. E garantiam-se os frutos batendo em crianças com lenha de fogão, descamando a pele com ferro quente, como se descasca o milho."

domingo, 8 de abril de 2018

Nos últimos dias

Exposições

Maria Auxiliadora, no Masp
Imagens do Aleijadinho, no Masp
Emanoel Araújo, no Masp
Véio, no Itaú Cultural
Esse obscuro objeto do desejo, na Fortes D'Aloia & Gabriel

Livros

Os Sertões
Entre o mundo e eu
Reflexos e Sombras

Filmes

Imagens do Estado Novo 1937-1945
Trash Humpers (no Mubi)
Let there be light
Uma mulher fantástica
Zama

Os Sertões (Final)

"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados."

Canudos não se rendeu.

Canudos não se rendeu.

Canudos não se rendeu.

Repito mentalmente essa frase há quase uma semana. Ela está perto do fim de Os Sertões e ressoa.

Os Sertões é sobre a aniquilação de um líder popular. É sobre a origens das favelas do Rio de Janeiro. É sobre ocupação militar e resistência.

Canudos deu uma sova no exército. Você vai lendo Os Sertões e chega um novo capítulo, por exemplo, o da expedição Moreira César ou A Nova Luta. Você pensa: agora vai, a República vai massacrar Canudos e Euclydes da Cunha ainda vai enrolar por uns capítulos. Não vai. O exército vai tomar uma nova sova. Canudos só é derrotada no final, "por esgotamento completo".

Canudos não se rendeu.

Canudos não se rendeu.

Canudos não se rendeu.

Antônio Conselheiro, encontrado morto, foi desenterrado e teve sua cabeça decepada e analisada – segundo preceitos científicos da época que hoje sabemos que eram racistas.

Quando acharam seu corpo, fizeram a única foto conhecida do líder de Canudos:



Fico por aqui.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Pão irlandês

Irish soda bread

Voltei a fazer experiências com levain, e talvez fale sobre isso mais pra frente.

Hoje, queria dividir com vocês a receita de um pão ridiculamente fácil de fazer, e uma cozinha em pleno funcionamento tem todos os ingredientes no armário.

Vale a pena guardar essa receita, porque é tão rápido quanto ir à padaria. Num domingo, dá pra acordar e fazer pro fim de semana.

Ingredientes

450 gramas de farinha branca (3 1/2 xícaras) e mais um pouco pra quando for amassar o pão

uma pitada generosa de sal

uma colher de chá de bicarbonato de sódio, que é o fermento

1 1/2 xícara de buttermilk, que é algo que é difícil de achar pronto no Brasil, mas você vai fazer colocando umas gotas de limão no leite e deixando parado por uns cinco minutos. Vale a pena já preparar um pouco mais pro caso de a massa ficar muito farinhenta

(Você pode acrescentar passas ou castanhas na massa se quiser. Em alguns países, isso é comum, mas tradicionalmente o pão irlandês é puro mesmo)


Como fazer

Pré-aqueça o forno enquanto separa os ingredientes e prepara o buttermilk.

Numa vasilha, misture todos os ingredientes.

Com a mão, comece a amassar numa superfície coberta com farinha, até a massa ficar uniforme. Ela vai estar pronta quando parecer uma massinha de modelar: consistente, sem estar pegajosa nem úmida.

Molde a massa até deixar num formato arredondado.

Faça dois cortes em formato de cruz no pão. Esses cortes podem ser bem profundos, chegando até o centro da massa. (Veja na foto acima como fica)

Ponha no forno numa forma untada. Deixe por 15 minutos em 250ºC e depois reduza pra uns 200ºC e deixe mais uns 40 minutos, até ficar bem dourado por fora.

Coma quente, com uma boa manteiga.

quarta-feira, 21 de março de 2018

A cara que mereces


Da abertura do filme A cara que mereces, de Miguel Gomes.

(Vimos no Mubi, que tem nos ajudado a ver os primeiros filmes desse diretor, de quem somos tão fãs.)

terça-feira, 20 de março de 2018

Os Sertões (II)

Com o avanço da leitura, retorno para mais algumas observações, sobre Os Sertões, que começaram ali embaixo.

E porque, com a intervenção militar no Rio, alguns paralelismos ganham interesse.

A intervenção ressoa no livro; o livro, na intervenção.

Os agrupamentos que chamamos de favelas surgem no Rio com a derrocada de Canudos. Morro da Favela foi um dos territórios do Conselheiro.

A rigor, a gênese da intervenção atual está descrita em Os Sertões.

*

A formação de Euclydes da Cunha na Escola Militar da Praia Vermelha e na Escola Superior de Guerra é um elemento importante. O autor é um militar, entende de batalha e se surpreende com o rigor do sertanejo. Também tem base para criticar o exército, para ver seus erros.

*

Destaco duas citações que extraí do capítulo sobre a chegada da expedição militar comandada por Moreira César:

"Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas."

"O fetichismo político exigia manipansos de farda.

Escolheram-no para novo ídolo."

(sendo manipanso o próprio Moreira César. Hoje, temos candidatos a manipansos enviados pelo governo federal para todo lado.)

Nos últimos dias

Filmes

Amante por um dia
Maria Madalena
A cara que mereces (no Mubi)
Trama fantasma
Projeto Flórida
Lumière!

Livros

Hit makers - Como nascem as tendências
50 poemas de revolta

HQ

Uma irmã

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Os Sertões (I)

Fiz algumas notas de leitura de Os Sertões, que comecei a ler há alguns dias. Estou no fim da parte 2, O Homem.

Estou lendo uma edição velha que estava aqui em casa, cheia de erros de revisão. Caso alguém queira me acompanhar, creio que a edição Ubu/Sesc seja mais digna.

*

Lembro o tempo todo que meus professores de literatura sempre diziam que a gente devia pular os capítulos A Terra e O Homem e ir direto pra A Luta, que é quando Euclydes da Cunha conta sobre Canudos. Hoje, afirmo: discordo demais dessa ideia. A Terra é certamente mais duro, cheio de termos técnicos de geologia, mas tem lá sua beleza. O Homem, apesar de tudo, é maravilhoso, especialmente quando começa a falar do Antônio Conselheiro.

*

Euclydes da Cunha começa o livro muito mais racista do que eu podia imaginar. Não lembro de ter tido essa discussão na escola ou de ter visto em algum lugar – mas também nunca tinha me aprofundado em Os Sertões.

A frase famosa a respeito de o sertanejo ser, antes de tudo, um forte é dita com certo espanto, porque pra ele a mestiçagem enfraqueceria a genética do homem. Ou seja: pra Euclydes da Cunha, naquele momento, o sertanejo é, APESAR e não ANTES de tudo, um forte. Apesar de ser mestiço, parece dizer o jornalista, pois, pra ele, ser mestiço é ainda pior que ser negro ou índio. É quase uma surpresa a seus olhos que um mestiço possa se virar tão bem quanto os sertanejos. Os mestiços do Sudeste, que lhe são mais familiares, parecem ser mais piores. Mesmo feios, com aparência de preguiçosos, os sertanejos são muito capazes.

Esse racismo de Euclydes da Cunha vem da ciência eugenista da época, claro. Tenho pra mim que, de certa forma, essa visão vai esmaecendo na medida em que ele depara com o sertanejo, que lhe parece de fato um tipo extraordinário. É como se todas as bobagens eugenistas não batessem com a realidade que ele encontra no sertão e, aos poucos, fosse deixando pra lá sua ciência eugenista que, a rigor, não lhe serve pra nada. Até aqui, contudo, Euclydes da Cunha não chega a perceber conscientemente que as teorias eugenistas eram uma bobagem sem tamanho. Mas, sem querer passar pano, me parece que ele escreve como se, no fundo, desconfiasse disso.

(Insisto num ponto: essa é a impressão que tenho até aqui. Mais adiante, posso revisar esse olhar.)

*
Me chama muita atenção a influência de Francisco de Assis na figura e no imaginário de Antônio Conselheiro. São Francisco é, a seu modo, o molde que Antônio Maciel usa para se tornar um santo em vida. Antônio Conselheiro segue uma cartilha bem franciscana nos seus anos de formação: vive de esmolas, e só o suficiente pra sobreviver, dorme em tábuas ou no chão, faz um diálogo direto com Deus, sem intermédio da Igreja. Não por acaso, creio: Antônio, afinal de contas, é um Antônio, como o santo seguidor de Francisco. O rio que corta o sertão é o São Francisco.

Chuto, então, que Antônio Conselheiro se forjou um São Francisco, talvez não deliberadamente, mas talvez porque fosse a única forma que pudesse enxergar de ser, em vida, em pleno sertão, um homem santo.

(Para aprofundar em Francisco e poder comparar, recomendo ler Francisco de Assis, Vida de Um Homem, de Chiara Frugoni.)

Volto outra hora.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Turrell


Essa história aconteceu durante a exposição Materialidade, no Sesc Belenzinho, em 2015, que exibiu a obra acima - uma projeção de James Turrell.

Um menino viu a obra e foi com tudo em direção a ela. Bateu na parede.

A mãe disse:

- É uma parede, meu filho.

E eis que o menino, que entendeu tudo da vida, disse:

- Claro que não, mãe. É uma passagem.

E se arremessou de novo, com toda a força.